Coração
de passarinho
Alberto Cohen
Daniel era uma criança cheia de emoções
e uma atenção enorme para com as coisas
da natureza, principalmente os seres que
o homem convencionou chamar de
irracionais. Dentre todos eles, Daniel
sentia atração irresistível pelos
passarinhos, essas pequeninas letras
aladas com as quais Deus compõe os seus
poemas.
Encantava-se com as asinhas frágeis que,
no entanto, eram capazes de
impulsioná-los em vôos acrobáticos e, ao
mesmo tempo, seguros; comovia-se ao
vê-los beber água, erguendo os biquinhos
para o céu, como a agradecer ao Criador
por aquela dádiva; esquecia-se do mundo,
inebriado por seus cânticos, sons que
jamais seriam igualados pelos
instrumentos musicais mais perfeitos
inventados pelo homem; finalmente,
sonhava que um dia voaria também, não em
avião, desajeitado monte de metais, mas
com as próprias asas, seguindo os
passarinhos, sem destino certo, pela
liberdade dos céus.
Para ficar mais perto das aves que tanto
amava, pediu aos pais que fossem morar
em um dos andares mais altos de enorme
arranha-céu e de lá, de sua sacada,
passou a imaginar que estava numa
frondosa árvore, onde tinha seu ninho,
rodeado pelos amigos alados.
Um dia, ao acordar, a curiosidade do
menino foi despertada por um sabiá que,
ofegante, repousava no chão do quarto.
Aproximou-se, tomou-o nas mãos e
percebeu que uma das patinhas da ave
estava machucada, talvez por alguma
pedrada. O sabiá, como se
instintivamente reconhecesse um amigo,
deixou-se ficar, docilmente, nas mãos
que o acalentavam e improvisavam um
curativo para o ferimento.
A partir daquele dia, Daniel passou a
ser um verdadeiro “médico” para seu
amiguinho, abrigando-o numa caixa de
sapatos forrada de retalhos e tratando-o
tão bem que rapidamente a ferida começou
a cicatrizar e o sabiá até já cantava,
como se anunciasse que a partida estava
próxima.
E esse dia chegou! Daniel foi
surpreendido pelo passarinho que na
sacada improvisava voos curtos, como
experimentando a resistência para o
retorno à vida normal.
Sentindo que breve iria se separar do
amigo tão querido, Daniel começou a
falar consigo mesmo: “Logo estarás
voando, livre, sem qualquer fronteira,
pelos espaços abertos, sem limites, sem
destino senão voar e cantar pelos
caminhos do mundo, enquanto ficarei
preso nesta caixa de concreto. Sinto
alegria por ti, que serás liberto, e
tristeza por não poder te acompanhar
nessa aventura. Que pena que não saibas
falar para dizeres adeus”.
Para surpresa do garoto, o sabiá voou
até seu ombro e respondeu:
“Existem muitas formas de falar. Delas,
a mais verdadeira é a do coração e com
ele eu sei falar. Tu não tens asas, mas
podes voar com o coração, aliás, através
dele tudo se pode fazer. Pelo coração
quase me transformei num menino; pelo
coração voarás comigo sempre e sempre
estarei contigo em teus vôos de ser
humano. Estou confuso e nem sei mais se
sou passarinho ou menino, mas, com
certeza, sei que tens e terás, sempre,
um coração de passarinho”.
E voou. E Daniel voou com ele.
.~.~.VOLTAR.~.~.
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